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Odiando em nome do amor


Senhor, quer que mandemos descer fogo dos céus para os consumir?” (Lucas 9.54b)
Essa frase foi dita a Jesus pelos discípulos Tiago e João quando uma vila de samaritanos recusou receber Jesus e seus companheiros que estavam a caminho de Jerusalém.
Este episódio está registrado no Evangelho de Lucas, capítulo 9, dos versos 51 a 56.
Temos três personagens, ou grupo de personagens, que precisam ser entendidos nesse texto: os samaritanos, Jesus e os discípulos Tiago e João.

QUEM SÃO OS SAMARITANOS?
Para entendermos a profunda rivalidade entre judeus e samaritanos, precisamos voltar alguns séculos na história de Israel.
Os samaritanos são os remanescentes do reino do norte, Israel,cuja capital era Samaria, após a sua conquista pelo Império Assírio.  Este império tinha o costume de pulverizar os povos e culturas que conquistava miscigenando-os, transportando grupos de pessoas de um lado ao outro dos territórios dominados. Assim, os samaritanos são uma mistura de israelitas e diversos outros povos que vieram transportados. Essa miscigenação se refletiu na religião, resultando em uma mistura e idolatria que desfigurou a adoração a Jeová (2Rs 17). Isso aconteceu em 722 a.C.
Além de serem um mistura étnica e religiosa, o que já seria suficiente para gerar repulsa por parte dos judeus, outro episódio acirrou essa rivalidade.
Por volta de 539 a.C., os judeus estavam voltando do cativeiro babilônico para reconstruir o templo do Senhor e os muros da cidade (Ed e Ne). O capítulo 4 de Esdras registra o longo histórico das dificuldades criadas pelos moradores de Samaria para impedir a reconstrução do templo. E o capítulo 4 de Neemias registra o empenho dos samaritanos em impedir a reconstrução dos muros.
Kenneth Bailey, em seu livro “As Parábolas de Lucas, traz vívidos exemplos da gravidade dessa rivalidade:
“Os séculos de animosidade entre os judeus e os samaritanos são expressos na sabedoria de Ben Sirach (Eclesiástico 50.25-26), de cerca de 200 a.C.: ‘Dois povos aborrecem a minha alma, e o terceiro, que eu aborreço, não é um povo: Os que habitam no monte Seir, e os filisteus, e o povo insensato que habita em Siquém.’
Assim, os samaritanos são comparados aos filisteus e os edomitas. A Mishna declara: ‘Aquele que come o pão dos samaritanos é como aquele que come a carne de suínos’ (Mishna Shebiith 8.10, Danby, 49). Durante toda a época de Jesus foi intensificada a amargura entre judeus e samaritanos pelo fato de os samaritanos terem contaminado o templo durante uma festa de páscoa, poucos anos antes, espalhando ossos humanos pelo pátio do templo (cf Josefo, Antiguidades, 18.20). Oesterley observa: ‘Os samaritanos eram publicamente amaldiçoados nas sinagogas; diariamente era feita uma petição a Deus para que os samaritanos não fossem participantes da vida eterna’ (Oesterley, 162)” [p. 92]
Então, para um judeu zeloso, os samaritanos eram impuros, idólatras, blasfemos, inimigos de Deus e da fé, indignos de misericórdia, comunhão e salvação.

QUEM É JESUS?
O capítulo 9 de Lucas começa com uma indagação: Quem é Jesus? É Herodes que faz essa pergunta no verso 9. E Lucas responde a pergunta com dois relatos inequívocos: A confissão de Pedro (v. 20) e a transfiguração (vs. 28-35). Fica claro que a resposta a essa pergunta é que Jesus é o Filho de Deus, o Messias prometido de Israel. Ele não é apenas um profeta, ele é o cumprimento de todas as profecias!

QUEM SÃO OS DISCIPÚLOS?
Deixando de lado as informações sobre as origens dos discípulos Tiago e João, vamos nos ater às informações diretamente relacionadas ao texto que estamos analisando. Podemos extrair quatro características desses homens no texto:
a) sabem que é Jesus;
b) amam a Jesus e, por isso, zelam por ele.
c) são conhecedores das Escrituras; e
d) tinham muita fé.

Sabem quem é Jesus
Tiago e João presenciaram a confissão de Pedro, “És o Cristo de Deus!”. Eles viram Jesus confirmar essa confissão, mandando que eles não contassem essa verdade a mais ninguém. E para além das palavras de Pedro e do próprio Jesus, Tiago e João foram testemunhas oculares da transfiguração de Jesus e do testemunho do próprio Deus Pai: “Este é o meu Filho, o meu eleito; a ele ouvi.”.
Amam e zelam por Jesus
Provavelmente por saberem que Jesus é o Filho de Deus e o Messias esperado, Tiago e João amam seu mestre. Ele é a realização de tudo o que eles esperavam. O Salvador! O Rei!
Eles querem cuidar de Jesus. Querem servi-lo.
Ao receberem a tarefa de encontrar lugar de repouso para ele, foram até uma aldeia de samaritanos. Mas estes se recusaram a recebê-los. Isso era inconcebível! Estes odiosos samaritanos estavam desprezando o Messias! Esses impuros só estão confirmando sua impureza. Sua indignidade. Sua maldade.
O que esperar de pessoas que foram capazes de profanar o templo? São blasfemos! Eles não podem desprezar assim o Filho de Deus! Isso não pode ficar impune! Esses hereges merecem ser castigados por desrespeitar o Reis dos reis, o Senhor dos senhores!
Conhecem as Escrituras
Diante desse sentimento de indignação e ira, Tiago e João demonstram ter conhecimento das Escrituras. Isso porque a proposta que apresentam a Jesus já tinha acontecido.
Certa vez, Acazias, um rei ímpio de Samaria (!), enviou soldados para trazer o profeta Elias a sua presença, a força. O capitão desses soldados chamou Elias de homem de Deus e transmitiu a ordem do rei de que ele deveria acompanhá-los até o rei. Elias respondeu: “Se sou homem de Deus, desça fogo do céu e te consuma a ti e aos teus cinqüenta.” (2Rs 1.9-10).
Tiago e João, conhecedores das escrituras, tinham esse episódio em mente quando fizeram a pergunta a Jesus. Afinal, eles eram homens de Deus. Sabiam que estavam a serviço de Deus, pois estavam a serviço do Filho de Deus. Eles zelavam pela reputação e dignidade do Rei. Natural que pensassem poder mandar descer fogo dos céus.
Tinham muita fé
Além de conhecerem as Escrituras, Tiago e João tinham muita fé nelas. Eles tinham certeza que esse relato era verdadeiro. Eles tinham certeza que Jesus era o Filho de Deus. Eles tinham certeza que eram homens de Deus. Então eles tinham certeza que, se ordenassem, cairia fogo do céu para consumir os blasfemos que atentaram contra a dignidade do Cristo de Deus. Não havia nenhuma dúvida em seu coração, não apenas da capacidade da ação, mas também de que a ação era perfeitamente justa. Eles não apenas podiam mandar descer fogo do céu como também estavam certos em fazer isso.

A RESPOSTA DE JESUS
Quão desconcertante deve ter sido para Tiago e João ouvirem a resposta de Jesus!
“Vós não sabeis de que espírito sois. Pois o Filho do Homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las.” (Lc 9.55-56).
Jesus não apenas esclarece o tipo de Messias ele é, mas também revela a extensão de sua obra. Ele não é um Rei guerreiro e conquistador que vai resgatar a grandeza do reino de Israel libertando-o da opressão romana. Ele é o Rei servo que veio salvar os perdidos. E ele não é o Rei servo apenas dos judeus. Ele veio salvar samaritanos também. E pessoas que qualquer raça, tribo, língua ou nação.
Ao dizer que eles não sabiam de qual espírito eram, Jesus estava afirmando que não era possível seguir o Filho e ser seu discípulo sem discernir qual é a sua missão.
Se a missão de Jesus é salvar os pecadores, impuros, idólatras, blasfemos, inimigos de Deus e da fé, a missão dos seus discípulos não pode ser destruí-los.
Haverá o dia em que Jesus voltará para punir o pecado. Haverá o dia em que o diabo, seus anjos e todos os pecadores que não estão refugiados em Cristo serão lançados no lago de fogo. Mas até esse dia chegar, a missão do Filho é salvar. E a missão de seus discípulos é anunciar essa maravilhosa salvação e demonstrar esse amor sacrificial, que está disposto a dar a vida pelo bem do outro.

CONCLUSÃO
A conclusão que devemos tirar do texto e do contexto é que é perfeitamente possível sabermos quem Jesus é e amá-lo por isso, bem como sermos bons teólogos e termos o coração cheio de uma fé inabalável e ainda sim estarmos em completa desarmonia com a vontade de Cristo.
Quem são os nossos samaritanos? Qual tipo ou grupo de pessoas que consideramos tão pecadores, impuros, idólatras, blasfemos, inimigos de Deus e da fé que estamos dispostos a destruí-los por amor e zelo a Jesus? Será que Jesus teria os mesmos sentimentos que os nossos em relação a essas pessoas?
Interessante ver que algumas pessoas não cristãs percebem essa desarmonia entre Jesus e seus seguidores. Entre o testemunho de Cristo e o testemunho da Igreja.
Só para citar um exemplo, segue um trecho da música “Rogério”, da banda Supercombo:
Você não sabe como é legal
Viver com sete bilhões de dedos apontados na tua cara
E todo mundo te odiar
Em nome do amor e todo bem que existe nesse mundo
Tiago e João estavam odiando em nome do amor, mas foram repreendidos por Jesus.
Se você está trilhando esse caminho e cultivando esse sentimento. Se você gostaria de invocar fogo do céu para queimar quem quer que seja por qualquer que seja a razão, pare agora. Arrependa-se e busque se harmonizar com a missão do Filho.

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